CURADORIA

O REALIZADOR XAMÃ, MANIPULADOR DE SONHOS
Dellani Lima

Para um xamã o sonho é uma viagem do nosso espírito além da matéria. Um instrumento de comunicação com as divindades. A alma atravessa o corpo para experienciar as infinitas possibilidades do cosmos e da imaginação. A capacidade de transmutação e a viagem onírica como ferramentas para conectar realidades ou dimensões. O sonho como meio de acessar a essência das coisas, simultaneamente em passados, presentes e futuros. A existência antes do nascimento e após a morte. Podem ser aprendizagens do passado, metáforas do presente ou imagens do futuro. Nesse estado de sonhador, onde o amor e a magia nos dominam, podemos observar acontecimentos, seres e lugares íntimos ou longínquos, afetuosos ou amedrontadores.
         
A palavra xamã é de origem tungue (da Sibéria) e significa literalmente "aquele que enxerga no escuro" e está relacionada à práticas especialmente dos povos das regiões asiáticas e árticas. O xamã é sacerdote, médico e artista ao mesmo tempo. Ele reflete toda cosmologia da sua tribo. É mestre em atravessar os mundos, voar sem limites. Nunca age em estado de lucidez plena e, sim, em êxtase. A sua iniciação costuma ser numa morte ritual, depois seu aprendizado é guiado por um xamã mais velho. Usa sua sabedoria para os processos de cura e de auto-conhecimento. Compreende a energia em constante movimento de todos os elementos e seres. Mas a alma humana é o seu território.
          
Freqüentemente xamãs relatam em suas viagens oníricas ou transes, que têm acesso ao mundo espiritual e por isso manipulam suas ações, essencialmente as malignas. Muitas vezes sonham com a morte, transcendem para o reino dos espíritos, conhecem as medicinas dos ancestrais e renascem para diagnosticar as doenças. Nos sonhos eles também se metamorfoseiam em animais para encontrar alguma resposta para suas questões. Até mesmo o êxito da caça é antecipada pelo xamã. Ele transcende seu corpo para caçar os espíritos dos animais ou para pedir permissão para o grande espírito das florestas. Gestos, danças, narrativas, poemas e imagens descrevem sua passagem pelo além. Assim os caçadores partem para a mata sem dúvidas do sucesso de sua empreitada.
         
No universo onírico, gestos perdidos e palavras esquecidas tornam-se cores, sons, pessoas, animais, criaturas, uma infinidade de lembranças, de cicatrizes, de fantasias, tudo dentro de nós mesmos. Sonhar é parte de nosso destino e suas imagens são fragmentos de nossa existência. Em muitas tribos pelo mundo o xamã escuta os sonhos de sua aldeia todos os dias. Principalmente nos sonhos clarividentes, as imagens oníricas são expostas e analisadas a partir do passado e dos sonhos de outros membros da tribo, nos quais relacionam seus sonhos com os do sonhador. Em seguida essas imagens são interpretadas a partir da condição social e emocional do sonhador. O xamã ouve os sonhos para interpretá-los como curas ou orientações espirituais para alguns indivíduos ou para todo grupo. A manipulação dos sonhos também restabelece a memória da comunidade. No tempo das origens, no tempo do sonho, onde residem os espíritos ancestrais, animais, plantas, seres e paisagens de outras dimensões.
        
A própria linguagem é um processo onírico. Os sonhos revelam nossos mais íntimos segredos. Uma parte oculta da nossa própria existência. O desejo do coração, escondido e profundo. Um reflexo do que realmente somos, no qual temos acesso ao inconsciente coletivo, onde os conflitos internos eclodem mesmo sem entendermos seus significados. Uma experiência emocional intensa. Para a psicanálise, os sonhos revelam desejos reprimidos, medos, culpas e frustrações. Como também outros sentidos, que apresentam questões da vida que não foram solucionadas. Sonhos que se repetem com freqüência, principalmente pesadelos, seriam problemas em busca de respostas. Uma forma de expressão do inconsciente coletivo, um oceano de formas e símbolos.
         
As profundas transformações sócio-políticas e econômicas, os inúmeros estímulos e a velocidade das informações se tornaram também grandes obstáculos para se sonhar ou transformar os sonhos em alguma realidade atualmente. Mas o verdadeiro sonho transgride tudo que procura deter seu movimento. Sonhos subversivos, inconformistas e anti-capitalistas. Pois viver bem é buscar uma maneira de compreender o conflito entre as pulsões de vida e de morte em nossa existência. O xamã é um sonhador também porque é um visionário, vê muito além da realidade exterior, confia nos seus sonhos e acredita que tudo pode mudar. Invoca a fantasia e a inventividade para rompermos o véu da ilusão, para entendermos melhor a complexidade da vida, para sonharmos mais. Um sonho pode atuar como uma música, uma poesia ou uma imagem, ou os mesmos poderão atuar como sonhos. A qualidade da interpretação e o poder de realização do sonho definem o mundo do sonhador e aos poucos rasgam suas máscaras e afugentam seus fantasmas. O desejo é de liberdade, de criação, de realização constante do sonho utópico. A realidade é a interior, o mundo dos sonhos, o acesso direto ao inconsciente coletivo. O universo brinca com seus signos. O sonho revela a essência a seus devotos e exorciza a superficialidade de seus inimigos. E sonhar é traçar seu próprio destino. Para voar numa jornada além dos limites do mundo e de si mesmo.
         
Alguns filósofos e teóricos já tentaram aproximar as experiências do sonho com o cinema, ou vice-versa, enquanto outros negaram qualquer analogia entre os dois. Não foi casualmente que o cinema e a psicanálise surgiram no mesmo período histórico, mesmo que Freud não gostasse realmente do cinematógrafo. Na sala de projeção o espectador por identificação ou por fruição, como nos sonhos, também rompe as amarras da realidade exterior e vive inúmeras experiências emocionais ou sensoriais através de imagens e sons produzidos para o entretenimento e também para o estranhamento, a reflexão ou o transe.
        
Benjamin esquadrinha a relação terapêutica e epistemológica entre o cinema e a percepção sensível do homem moderno. Sua teoria é fundamentada profundamente no mundo dos sonhos. O aumento da percepção, que revelará características da realidade até então desconhecidas, uma ampliação do conhecimento humano. Benjamin afirma que o cinegrafista penetra profundamente na realidade por descortinar sua intimidade. Arranca o objeto da sua casca e destrói sua aura. Assim a potencialidade de encaminhar o indivíduo ao mundo dos sonhos poderá externar elementos significativos da sociedade. E o cinema funcionará como exercício para se habituar e para compreender as transformações de seu meio social e do seu próprio cotidiano, também afetado pelos avanços tecnológicos. Mas num contexto de crítica ao capitalismo e aos seus valores tradicionais através da força criativa do subconsciente, a dimensão onírica e a livre associação de idéias como caminhos para a inventividade artística e para a atuação política. Capaz de empreender viagens aventurosas entre ruínas arremessadas à distância.
         
Mesmo que o cinema surja com sua tendência à industria ou ao mercado de entretenimento, sempre existiu a resistência artística que produziu inúmeras obras que proporcionam grandes viagens interiores em busca do auto-conhecimento e da cura de certas mazelas da alma, da vida. Desde o cinema de vanguarda até os percursos do experimental aos dias de hoje. Os "realizadores xamãs" e seus movimentos cinematográficos romperam com certas tradições artísticas e padrões sócio-culturais, para além dos modismos, longe dos padrões comerciais. Um cinema de autores, não-conformista, sensorial, íntimo, filosófico, complexo, poético, espiritual, político, inesperado. Narrativo ou não-narrativo, um cinema comprometido com a alma humana, com suas potências de criatividade e de renovação.
         
Na história do cinema podemos encontrar os nossos "realizadores xamãs", como Abbas Kiarostami, Akira Kurosawa, Alejendro Jodorowsky, Andrea Tonacci, Andrei Tarkovsky, Artavazd Peleshian, Béla Tarr, Carlos Reichenbach, David Lynch, Dziga Vertov, Edgar Navarro, Georges Méliès, Glauber Rocha, Humberto Mauro, Joaquim Pedro de Andrade, Joris Ivens, José Mojica Marins, Júlio Bressane, Kenneth Anger, Luis Buñuel, Luiz Rosemberg Filho, Mário Peixoto, Maya Deren, Michelangelo Antonioni, Nelson Pereira dos Santos, Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, Sergei Parajanov, Shuji Terayama, Stan Brakhage, Yasujiro Ozu, entre outros manipuladores de sonhos.

Tarkovsky desejava realizar filmes que pudessem trazer uma experiência profundamente íntima. Para ele, o espectador só se relaciona com o filme se sua concepção for fiel à vida, mais afetivo que intelectual. Para atingir as pessoas a arte deve mergulhar profundamente em sua essência, tentar reconstruir a estrutura viva de suas conexões interiores. Sinceridade, honestidade e mãos limpas. Dizer às pessoas sobre nossa existência comum através da nossa própria experiência e compreensão. Tentar estabelecer os vínculos que ligam as pessoas além da carne, laços que nos conectam com a humanidade e com tudo que nos circunda. Em seu manifesto "Estética do Sonho", Glauber afirmou que a existência não se sujeita a conceitos filosóficos e que a arte revolucionária deveria enfeitiçar o homem para que ele não suportasse mais viver na realidade absurda. A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora. Uma estética do eterno movimento humano em busca de sua integração cósmica.

O que nomeamos afetivamente de Cinema de Garagem ainda resiste dentro da genealogia experimental e poética dos nossos antepassados, das tradições xamânicas e subversivas dessas "estéticas do sonho". Não apenas por seus aspectos econômicos, mas também por suas características estéticas, éticas e políticas. Um cinema de hibridismos, de dramaturgias mínimas, de caminhos intransponíveis, de resistência, de amores possíveis, de solidão, de desconstrução do cotidiano, de rompimento com muros e correntes, de conciliação com a morte e o cosmos, de sonhos lúcidos.

Texto livremente inspirado nas obras de Andrei Tarkovsky, Carl Jung, Gilles Deleuze, Glauber Rocha, Peter Lamborn Wilson, Sigmund Freud e Walter Benjamin.

Belo Horizonte, Inverno de 2014
             

 

 

O Cinema de Garagem é Uma Aventura

No ano passado, em 2013, segundo os relatórios oficiais da Agência Nacional do Cinema (ANCINE), foram lançados 129 filmes brasileiros nas salas de cinemas. Este número sugere a boa fase do cinema brasileiro, já que é o maior número de filmes lançados desde os anos noventa (a chamada "retomada"), superando a marca de 100 filmes por ano. Nunca antes tivemos tantos filmes brasileiros nas telas dos cinemas. No entanto, esses números mascaram uma outra realidade. Enquanto 9 filmes ultrapassaram a marca de 1 milhão de espectadores, a grande maioria dos filmes brasileiros permanece sendo pouco vista. Entre os 129 filmes, 94 (73%) não atingiu 10mil espectadores e 35%, menos de 1 mil espectadores. Ou seja, um em cada três filmes brasileiros lançados não atinge um público de mil espectadores nas salas de cinema.

Esse dado pode ser interpretado de diversas formas. Os mais afoitos podem concluir que a maior parte dos filmes brasileiro é de baixa qualidade, não atingindo o público. Mas se investigarmos com mais atenção a raiz do problema, veremos que a realidade é mais complexa. Existe toda uma configuração do mercado cinematográfico que tende a ser extremamente perversa, concentrando a renda dos cinemas em um punhado de poucos filmes, que, em geral, tendem a replicar os modelos e fórmulas do bom gosto cinematográfico: filmes com estética televisiva, efeitos espetaculares mirabolantes, atrizes ou atores conhecidos, roteiros lineares de plena identificação do espectador. O modelo de exibição consagrado mundialmente - o multiplex - ainda mais aprofundou o domínio das majors, o oligopólio global que domina as receitas cinematográficas não só no Brasil mas em quase todos os países do mundo.

O que esse número indica, por outro lado, é que os mais relevantes filmes brasileiros produzidos não conseguem chegar ao seu público. Existe uma barreira imposta pelo mercado que afasta esses filmes de seu público potencial. Mas o que são "filmes relevantes"? A meu ver, são os filmes que, ao invés de fornecer ao espectador um repouso merecido, um entretenimento relaxante, possam gerar dúvidas, incomodá-lo, inquietá-lo, ou seja, que, ao contrário dos primeiros, não sejam um mero produto comercial ou um ingresso para uma clínica de spa, mas que possam tirar o espectador da mesmice, de sua zona de conforto, que o façam ser outra pessoa, que o levem a duvidar se sua vida é de fato aquilo que ele pensou que era.

Qual é o caminho, então, diante do avassalador domínio do mercado? Resistir. Organizar uma mostra de cinema é, nesse contexto, erguer placas, jogar coqueteis molotov, contra o monopólio do capital. É defender a liberdade de expressão, um exercício utópico de cidadania em que o espectador possa de fato ter alternativas diferentes de consumo, que ele possa de fato escolher, que ele possa de fato ser. Pois o que somos afinal? Meros números? Meros consumidores? O cinema, a arte, num mundo materializado, mecanizado, pode ser (utopia dos nossos tempos) um instrumento de investigação do nosso universo sensível. Um espaço em que podemos, "desinteresseiramente", exercitar nossa liberdade de olhar e de sentir. Um lugar em que temos todo o tempo do mundo para perder. Um lugar em que podemos "perder" tempo à vontade. Pois que história é essa de que não temos tempo a perder, se tudo o que nos faz é exatamente a possibilidade de desfrutar o tempo? Não temos mais tempo de contemplar o canto dos pássaros, o caminhar lento de uma criança, pois estamos esmagados diante dos blocos de concreto e presos nos engarrafamentos de nossa própria vida.
           
Essa mostra de cinema é um gesto. Uma tentativa de abrir uma janela. De jogar uma garrafa no mar. De abrir a caixa de pandora do desconhecido. De nos deixar surpreender pelo comum. Pelo que nos faz. Pelo que somos. Nenhum desses filmes é necessariamente "agradável". Não foram feitos para "agradar". Foram feitos para lançar questões que estão longe de serem respondidas. Foram feitos para experimentar os limites de nossa experiência sensível, para saborear a possibilidade do desconhecido. Embarcar nesses filmes é como entrar em uma grande aventura, é como escalar uma montanha cujo pico não o vemos por conta da neblina, é como fazer uma viagem de "mochilão", sem saber muito bem onde isso vai dar.

Venha você também desfrutar as dores e as delícias de ser um aventureiro, e, contra todos os prognósticos, tentar fazer arte no país. A porta está entreaberta. Cabe a você decidir entrar por essa fresta, e conhecer um pouco mais do maravilhoso reino encantado do cinema de garagem brasileiro.

Marcelo Ikeda
Curador